domingo, 12 de julho de 2020

Um apólogo

Machado de Assis

            Era  uma  vez  uma  agulha, que disse a um novelo de linha:
            - Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
            - Deixe-me, senhora.
            - Que a deixe? Que a deixe, por quê?  Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei  sempre que  me  der  na  cabeça.
            - Que cabeça,  senhora?   A  senhora  não  é  alfinete,  é  agulha.  Agulha não tem cabeça.  Que lhe importa  isso?   Cada qual tem o jeito  que Deus lhe deu.   Importe-se  com a sua vida e deixe a dos outros.
            - Mas você é orgulhosa.
            -  Com certeza sou.
            - Mas por quê?
            - É boa! Porque alinhavo, costuro. Então os vestidos e enfeites de nossa patroa, quem  é que  os faz, senão eu?
            - Você? Esta foi boa! Você é que os costura? Você  ignora  que  quem costura sou eu, e muito  eu?
            - Você fura o pano, nada mais; eu é que costuro, prendo um pedaço ao outro, dou forma aos vestidos e babados...
            - Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
            - Também os batedores vão adiante do imperador. 
            - Você é imperador?
            - Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel  subordinado, indo adiante. Vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e de importância reduzida. Eu é que prendo, ligo, junto...
            Estavam nesta discussão, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava na casa de uma baronesa, que tinha uma costureira só para si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou o pano, pegou a agulha, pegou a linha, enfiou a linha na agulha, e  começou a costurar. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das  sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os cães de caça de Diana. E a agulha dizia:
            - Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta nobre costureira só se importa comigo. Eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
            A linha não respondia nada; ia andando.  Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela,  silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na sala de costura.  Não se ouvia nada além do plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Anoiteceu, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte, e continuou ainda nesse e no outro dia, até que no quarto dia acabou a obra. Estava pronto o vestido para o baile.
            Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha para dar algum ponto se necessário. E enquanto arrumava o vestido da bela dama, e puxava um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para zombar da agulha, perguntou-lhe:
            - Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira? Vamos, diga lá.
            Parece que a agulha não disse nada, mas um alfinete, de cabeça grande, murmurou à pobre agulha: 
            - Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai aproveitar a vida, ir a bailes, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faças como eu, que não abro caminho para ninguém.  Onde me espetam, fico.
            Contei esta história a um professor, que me disse, abanando a cabeça: 
            - Também tenho servido de agulha a muita linha  que não me dá valor!

Nenhum comentário:

Postar um comentário