Retirado da revista Terapia Ilustrada, de 1954, esse texto é uma boa reflexão para os dias de hoje:
A Voz da Terra - por Aristides Ávila
Ora, saibam quantos esta crônica lerem ou dela tiverem conhecimento que, certa ocasião, num recanto de quintal, brigaram a Pimenta e a Flor de Laranjeira.
Dir-se-ia que a flora circunvizinha e também a fauna de arribação abrissem um parêntese na própria rotina para dar ouvidos ao caso, pois não deixa de ser divertido assistir de palanque a um torneio de desaforos.
Houve réplica e tréplica do estilo, com imputações incontestáveis e contestações irrespondíveis. Equilibravam-se os debates. Aliás, nunca se viu demanda em que um querelante não se julgasse com direito igual, senão melhor que o do antagonista. Móvel da rixa? Possivelmente, ciúmes, ódios e vaidades, que isso de cultivar defeitos como se fossem virtudes nem sempre é alto privilégio humano - produto de enxerto da razão no instinto. Os seres inferiores agem, às vezes, pior que os homens.
Mas a circunstância é que a Flor de Laranjeira, estando com a palavra, prosseguia nos artigos contra a Pimenta:
- Francamente, custa-me acreditar que você exista!
- Por que? Acaso não sou bastante visível?
- Demais! Com essa cor de labareda...
- E essa! Cada qual se veste da cor que mais lhe agrada... Então? Por que acha difícil acreditar na minha existência?
- Por causa da sua inutilidade.
- Inútil, eu?!
- Naturalmente! Sua presença magoa, sua ausência é um alívio.
- Mas é minha função. Todos me querem assim. E você, para que serve?... insípida, branca e fria, desse jeito?...
- Que pergunta! Vá indagar das noivas para que presto eu. Porventura, as donzelas enfeitam grinaldas com pimentas?
- Claro que não. Como também é exato que ninguém tempera guisados com flores de laranjeira...
- E é só para tempero que você presta?
- Já é algum merecimento. O que não me contentaria é ser apenas decorativa, como você... e, para maior dos pecados, uma presunção de inocência.
- Isso diz você, Pimenta, porque não passa de um símbolo de malícia.
- Como quer que seja, não costumo iludir a gente de boa fé. Sou ardentemente sincera: picante, em público e raso. E voce? Desfolha, morre... e, no seu lugar, brota uma laranja, muitas vezes, tão azeda que ninguém a tolera... nem com açúcar!
- Pouco importa! Essa indignidade é com a laranja, que é fruto, como você, e não flor, como eu. O que não padece dúvida é que tenho o coração cheio de mel. Não faltam abelhas para me beijarem...
- Pois eu prefiro que me mordam. E correspondo na mesma hora...
- À vontade... Quanto a mim, fico à espera das abelhas.
- E eu, à espera de alguém que me colha, para estimular o apetite das pessoas de bom tom.
- Sim, com esse gosto de fogo, que lembra o fundo do inferno...
- Pretenderá você insinuar, Flor de Laranjeira, que é um pedaco do céu, com esse triste cheiro de ingenuidade?
- Bem achado! Como não? Somos muito diferentes. Ponha-se no seu lugar!
- Pretensiosa! Você está enganada! Nós não temos nada que ver com o inferno nem com o céu. O que nós somos é produto da Terra, está ouvindo?
- E que estranha química faz a sua raíz, para tirar da Terra uma seiva tão brava?... da mesma Terra, de onde me vêm a graça e o perfume?
A Pimenta não entrou em explicações; saiu-se com esta:
- Ariel de fancaria!
Ao que revidou a Flor de Laranjeira:
- Calibã desmarcarado!
Assim continuaria a polêmica, sem resultado prático nem ponto final, se não acontecesse um imprevisto:
A Terra, tendo ouvido pronunciar seu nome, resolveu intervir na empatada pendência e apostrofou:
- Calem-se! Vocês não sabem o que dizem! Limite-se cada qual a ser o que é, e como é! Respeite os outros e reconheça, afinal, que as coisas não podem ser iguais. Cada uma em sua condição; um destino para cada uma. A igualdade absoulta abortaria em tédio, e o tédio é caminho do aniquilamento. Eis porque a Natureza criou a desigualdade. Porém a diversidade não é motivo para discussões. Eu sou mãe, e tenho autoridade para falar, porque sou eu quem dá a vida a vocês todos. Dou a vida e fico à espera da sua volta, pois, mais cedo ou mais tarde, todos hão de retornar ao meu seio: desde a árvore, que fornece a sombra confortadora, o fruto que alimenta e a tábua para o esquife, até o Homem, que vive às custas de vocês, como vocês vivem à minha custa! Repito: vocês acabarão voltando para mim, fundidos na unidade da matéria prima. E terão de nascer e renascer, até compreenderem esta verdade. Sirva isto de lição! E, por agora, basta! Vai anoitecer. Precisamos dormir. Não admito barulho nas minhas costas!
A advertência fez o ambiente silenciar, de fato.
E, como sucessivas cortinas que se fechassem, foram-se acumulando as trevas do crepúsculo. Tudo adormeceu ou, pelo menos, fingiu adormecer.
Em todo caso, o Grilo, como bom guarda-noturno, passou a noite inteira, de apito na boca, policiando a gleba.